quinta-feira, 28 de outubro de 2010

R356

Doeu-me, mas caiu a ficha, eu era um número; senhor R356, e isso era tudo o que importava. A culpa desta crise de identidade era a máquina de senhas da fila do banco, a partir daquele momento eu não tinha nome nem passado, eu era a pura abstração do vago termo “cliente”. Às vezes fantasio sobre a origem destas máquinas; um belo dia teóricos burocratas se reúnem para mais uma decisão maligna: “precisamos reduzir as pessoas a termos mais eficientes”, diz um, “que tal se as transformarmos em números?” responde o outro, e a platéia aplaude.

O cúmulo da indignidade, um número!

Um sino toca, o senhor P107 é chamado ao guichê. Maldita preferência para aposentados. O número está no R320, contando com uma estimativa de um aposentado para cada dez senhas, tenho cerca de 38 pessoas, digo, senhas à minha frente. Melhor é não tentar estimar a demora, se você estimar duas horas, demorarão quatro; o problema é a incerteza de quantas senhas especiais, senhas de aposentados e desistências você pode contar à sua frente, talvez as variáveis mais inconstantes do universo.

Bons tempos eram os tempos da fila. As pessoas sabiam exatamente quantos estavam à sua frente, qual era o ritmo da fila etc. e todos tinham que ficar de pé, não esta frescura sedentária de cadeirinhas azuis. Não! As pessoas tinham mais vigor e saúde antigamente. E quem era bom como ninguém para uma fila eram os soviéticos, esses chegaram a fazer filas gloriosas! Filas para mantimentos que davam a volta no quarteirão sob o frio inverno de Moscou. Por isso são um povo forte os russos, diferentemente desses obesos sedentários capitalistas e suas cadeirinhas azuis.

Mais uma vez o sino, e outra, e outra. Do meu lado o infeliz senhos R371 a quase trinta números da sua vez. Meus pêsames amigo, tempos desumanos esses. Na minha mão o papelzinho amarelo impresso a lazer, não ousei coloca-lo no bolso, afinal, essa senha era eu, tudo o que eu representava para o sistema, desumanamente concebido em série e fadado a acabar na lixeirinha do guichê. Uma morena se levanta na minha frente, simplesmente linda, um corpo escultural e uma expressão de “não me toque”. Me apaixono à primeira vista. Chega no caixa, entrega a senha, e tira da bolsa um enorme maço de contas a serem pagas; desiludindo naquele instante todo o meu amor. Por que tantas contas de uma vez só mulher?! Só para atrasar os outros! Ocupar por meia-hora um dos poucos guichês que tem?! Por que tanto cinismo com os sentimentos dos outros?!?!

Ufa; Desculpem-me... A frieza da espera está acabando comigo.

O tempo passa e finalmente minha vez parece próxima, três desistentes fazem o número da tela pular milagrosamente para o R353. pode ir meu caro senhor aposentado! Agora nada prolongará a minha espera. Sinto a alma leve quando a tela sinaliza R354 e depois R355, venci o sistema, provei minha paciência, sou um Buda, alcancei a iluminação atravez da espera, são pequenas coisas meu caro amigo R371, sua vez também chegará.

-Boa tarde.

-Boa tarde, Poderia descontar este cheque para mim?

-Claro, Por favor seu RG.

Agora já me dava o luxo de pensar o que fazer depois de sair do banco. Aproveitar um pouco do dinheiro para almoçar, fazer aquele pagamento atrasado. Sem um tostão no bolso fui salvo por este cheque, já podia relaxar, o dia estava lindo lá fora, logo chegaria o final de semana...

-Não tem fundos.

-Me desculpe, como?

-O cheque não tem fundos senhor.

Indignado, faminto, cansado... Fui embora.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Sei que a vida moderna não deixa tempo para a leitura de bons livros. Assim, envio-lhes o "resumo de clássicos da literatura" que muito ajudarão a engrandecê-los culturalmente.

1) Leon Tolstoi: Guerra e Paz. Paris, Ed. Chartreuse. 1.200 páginas.
Resumo:
Um rapaz não quer ir à guerra por estar apaixonado e por isso Napoleão invade Moscou. A mocinha casa-se com outro.
Fim.

2) Marcel Proust: À La recherche du temps perdu. (Em Busca do Tempo Perdido). Paris, Gallimard. 1922. 1600 páginas.
Resumo:
Um rapaz asmático sofre de insônia porque a mãe não lhe dá um beijinho de boa-noite. No dia seguinte (pág. 486, vol. I), come um bolo e escreve um livro. Nessa noite (pág. 1.344, vol. VI) tem um ataque de asma porque a namorada (ou namorado?) se recusa a dar-lhe uns beijinhos. Tudo termina num baile (vol. VII) onde estão todos muito velhinhos ? e pronto.
Fim.

3) Luís de Camões: Os Lusíadas. Editora Lusitania.
Resumo:
Um poeta com insônia decide encher o saco do rei e contar-lhe uma história de marinheiros que, depois de alguns problemas (logo resolvidos por uma deusa super-gente-fina), ganham a maior boa vida numa ilha cheia de mulheres gostosas.
Fim.

4) Gustave Flaubert: Madame Bovary. 778 páginas.
Resumo:
Uma dona-de-casa mete o chifre no marido e transa com o padeiro, o leiteiro, o carteiro, o homem do boteco, o dono da mercearia e um vizinho cheio da grana. Depois entra em depressão, envenena-se e morre.
Fim.

5) William Shakespeare: Romeo and Juliet. Londres, Oxford
Resumo:
Dois adolescentes doidinhos se apaixonam, mas as famílias proíbem o namoro, as duas turmas saem na porrada, uma briga danada, muita gente se machuca. Então, um padre tem uma idéia idiota e os dois morrem depois de beber veneno, pensando que era sonífero.
Fim

6) William Shakespeare: Hamlet. Londres, Oxford Press.
Resumo:
Um príncipe com insônia passeia pelas muralhas do castelo, quando o fantasma do pai lhe diz que foi morto pelo tio que dorme com a mãe, cujo homem de confiança é o pai da namorada, que, entretanto, se suicida ao saber que o príncipe matou o seu pai para se vingar do tio que tinha matado o pai do seu namorado e dormia com a mãe. O príncipe mata o tio que dorme com a mãe, depois de falar com uma caveira e morre assassinado pelo irmão da namorada, a mesma que era doida e que tinha se suicidado.
Fim

7) Sófocles: Édipo-Rei - tragédia grega. Várias edições.
Resumo:
Maluco tira uma onda, não ouve o que um ceguinho lhe diz e acaba matando o pai, comendo a mãe e furando os olhos. Por conta disso, séculos depois, surge a psicanálise que, enquanto mostra que você vai pelo mesmo caminho, lhe arranca os olhos da cara em cada consulta.
Fim.

8) William Shakespeare: Othelo.
Resumo:
Um rei otário, tremendo zé-ruela, tem um amigo muito fdp que só pensa em fazê-lo de bobo. O tal "amigo" não ganha um cargo no governo e resolve se vingar do rei, convencendo-o de que a rainha está dando pra outro.
O zé-mané acredita e mata a rainha. Depois descobre que não era corno, mas apenas muito burro por ter acreditado no traíra. Prende o cara e fica chorando sozinho.
Fim.

Você economizou a leitura de pelo menos 7.000 páginas e R$800,00 em livros!

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

O mundo em mim

nas minhas cartas de solitude, onde o tempo se derrete em lembranças liquidas, quando o mundo se torna abstrato, e cada nota da grande sinfonia universal passa a soar dentro de mim até sair na forma de uma lágrima...
nesta hora em que sou o tudo e o nada, no limite onde morre o pensamento, e que flutuo na substância etérea da realidade além dos olhos, eu existo em cada nascer e em cada por do sol, em cada pequeno momento perdido de flor que se abre e desabrocha, todo sorriso, toda ferida aberta, estou no milagre da vida e no milagre da morte, sou mais do que os sonhos mais intensos, o explodir das estrelas supernovas, sou a faca que acaricia, a contradição do existir e o paradoxo do mundo.
entre meus dedos rangem as máquinas do futuro, a energia do átomo me atravessa os nervos, as florestas que caem e os desertos que crescem estão em minha pele. sinto em mim todas as pessoas e todas as emoções , o deleite, a glória, o amor, o horror, o ódio, a virgem que deseja, o assassino que se arrepende, todo aquele que espera e sente saudade, soldados, politicos, prostitutas, pais, enfermeiros, motoristas, namorados e desaparecidosem mim vivem todos, em uma existência na alma que rasga a superfície.
todo significado se perde no puro existir, e a substância me afoga em ondas colossais a quebrar no rochedo. no turbilhão da tempestade, um prelúdio, uma marcha, o universo contido nas notas que seguem piano e depois forte, um equilibrio e desequilibrio constante na dança da existência. e tudo flui através de mim em um deslizamento apocalíptido epifânico sobre o segredo revelado de tudo.